O duplo papel do cálcio: de nutriente essencial a fator limitante na absorção de fósforo

1. Cálcio na nutrição avícola

O cálcio (Ca) é um mineral essencial para o desenvolvimento esquelético e processos fisiológicos, incluindo coagulação do sangue, contração muscular, transmissão de impulsos nervosos, ativação enzimática, reações metabólicas, síntese de proteínas e manutenção do equilíbrio osmótico e ácido-base (Crenshaw, 2001; Coon et al., 2002; Anwar, 2017). Uma deficiência de cálcio pode resultar em distúrbios esqueléticos graves, como raquitismo, discondroplasia tibial, fraturas ósseas e penas em más condições (Selle et al., 2009; Abdollahi et al., 2015). Para prevenir essas complicações e apoiar o crescimento saudável, é essencial garantir níveis adequados de cálcio na dieta. No entanto, o excesso de cálcio pode interferir negativamente na absorção e utilização de outros minerais essenciais (Anwar, 2017).

Devido às diferenças fisiológicas e metabólicas entre frangos de corte e poedeiras, este documento enfoca no uso de cálcio em frangos de corte.

1.1. Fontes comuns de cálcio em rações para aves

Os ingredientes vegetais são naturalmente pobres em cálcio e, para atender às necessidades nutricionais, fontes inorgânicas de Ca são utilizadas como calcário, fosfato bicálcico e monocálcico (Anwar, 2017; Kiarie & Nyachoti, 2010; González-Vega e Stein 2014) (Tabela 1).

Tabela 1: Concentração média de cálcio em ingredientes de rações para aves

A principal fonte de cálcio nas rações para aves é o calcário, que fornece até 70% da necessidade total de Ca, devido ao seu alto teor de Ca (~380 g/kg) e baixo custo. No entanto, sua solubilidade e digestibilidade podem ser influenciadas pelo origem e tamanho das partículas (Gilani et al., 2022; Cheng & Coon, 1990; Zhang & Coon, 1997).

Esses diferentes fatores contribuem para o fornecimento excessivo de Ca na ração. Um estudo de Walk (2016) analisou 795 dietas de frangos de corte e suínos de 2010 a 2015, revelando uma média de 25% acima do valor formulado de cálcio. Isso significa que, se uma dieta foi formulada para conter 0,80% de Ca total, o valor analisado pode ser tão alto quanto 1,02% ou quase 25% acima da concentração de Ca esperada na dieta (Figura 1).

Figura 1: Gráfico de dispersão representando o Ca total formulado e analisado em dietas de frangos de corte e suínos (n = 795) (Walk, 2016)

Essas diferenças se devem ao uso não controlado de Ca, devido ao baixo custo e sua presença em outros componentes (pré-misturas ou no farelo de soja como antiaglomerante e agente de fluxo) (Ravindran et al., 2014; Tamim et al., 2004). Esses excessos podem alterar o pH gastrointestinal e a digestibilidade do fósforo (David et al, 2021; González-Vega & Stein, 2014; Caminhada et al., 2012).

2. Sem cálcio, sem fósforo: uma interdependência nutricional

O cálcio e o fósforo são minerais fundamentais para o crescimento e desenvolvimento esquelético (Abdollahi, 2015). Seus papéis fisiológicos estão ligados devido à sua estreita interação que influencia a absorção e utilização de ambos os minerais.

A maior parte do P derivado de ingredientes vegetais está na forma de fitato (PP), que está com o fósforo pouco disponível, e suas concentrações podem variar muito dependendo dos ingredientes usados. O fitato (hexafosfato de mio-inositol; IP-6) é um potente agente quelante, ligando-se fortemente a cátions divalentes, proteínas, amido e enzimas (Figura 2).

Figura 2: Ácido fítico (hexafosfato de mio-inositol; IP6). Representação do IP6 em um ambiente extremamente básico, evidenciando sua alta carga aniônica. Criado em BioRender.com

2.1. Interação com fósforo

O cálcio, particularmente quando fornecido em excesso, pode afetar negativamente o processo digestivo, limitando a disponibilidade de nutrientes, especificamente minerais e lipídios, e prejudicar o desempenho produtivo. Este efeito deve-se principalmente à formação de complexos insolúveis Ca-fitato-proteína, uma reação saturável dependente das concentrações de íons cálcio (Ca²⁺) e ácido fítico (Nelson et al., 1968; Kim et al., 2018) (Figura 3).

Figura 3: Complexos insolúveis de Ca-fitato. Criado em BioRender.com.

Embora o  cálcio tenha uma das menores afinidades de quelação com o fitato em comparação com outros minerais inorgânicos (Zn²⁺ > Fe²⁺ > Mn²⁺ > Fe³⁺ > Ca²⁺ > Mg²⁺) e, portanto, um potencial inibitório relativamente baixo na hidrólise do PP; seu impacto significativo se deve em grande parte ao alto teor de cálcio (8,0 – 10,0 g/kg) em dietas de frangos. Assim, quanto maior a razão molar Ca:Fitato, maior a probabilidade de interações cálcio-fitato (Angel et al., 2002; Tamim et al., 2004; Selle et al., 2009; Driver et al., 2005; de Matos, 2008; Maenz et al., 1999).

2.2. Influência no pH gastrointestinal

O calcário apresenta alta e variável capacidade de ligação de ácidos (12.932 ± 21.883 mEq/kg) (Lawlor et al., 2005), o que aumenta o pH gastrointestinal (Wilkinson et al., 2013; Caminhada et al., 2012). Níveis mais altos de pH promovem a formação de complexos mineral-fitato, pois a precipitação desses complexos no intestino é dependente do pH. 

3. Estratégias para limitar o efeito antinutricional do cálcio

3.1. Fitases exógenas

Como o PP está pouco disponível, fitases microbianas são adicionadas para liberar fósforo do fitato. Um desafio é que o alto teor de cálcio favorece a formação de complexos fitato-mineral, o que reduz sua área de superfície e dificulta sua hidrólise enzimática. Embora a fitase tenha demonstrado melhorar a digestibilidade do cálcio, níveis elevados de cálcio podem reduzir sua atividade enzimática no intestino (Angel et al., 2002; Applegate et al., 2023).

3.2. Cálcio digerível

A digestibilidade do cálcio recebeu pouca atenção devido ao baixo custo do calcário. Com o foco crescente no fósforo digestível, sua reavaliação ganhou importância. Vários fatores dietéticos e relacionados a animais influenciam a digestibilidade do Ca. Por exemplo, David et al. (2020) demonstraram que a digestibilidade ileal do Ca diminuiu linearmente com a idade dos frangos. O primeiro passo é gerar dados sobre a digestibilidade do Ca, e a pesquisa ainda continua.

3.3. Humofosfato de cálcio

O cálcio pode exibir propriedades antinutricionais, reduzindo a disponibilidade de PP e outros nutrientes essenciais. Quando complexos insolúveis de cálcio-fitato são formados, as enzimas fitase não podem mais hidrolisar o fitato para liberar fósforo.

Entre as estratégias para mitigar os efeitos antinutricionais do cálcio, uma abordagem promissora é a inclusão de humofosfato de cálcio (HumIPHORA) nas rações. O HumIPHORA é produzido através de uma reação química envolvendo ácido fosfórico, fonte de cálcio e substâncias húmicas. Fornece 22% de fósforo e 15% de cálcio.

Substâncias húmicas são compostos orgânicos complexos resultantes da decomposição da matéria orgânica do solo. Embora as substâncias húmicas não sejam classificadas como nutrientes, elas contribuem na digestibilidade do fósforo. Vários estudos destacaram os efeitos benéficos das substâncias húmicas na utilização de nutrientes e na saúde intestinal em várias espécies animais (Arif et al., 2019). Em frangos de corte, as substâncias húmicas demonstraram aumentar a digestibilidade da ração, apoiando uma microbiota intestinal saudável, formando uma camada protetora na mucosa intestinal e melhorando a absorção de nutrientes (Arif et al., 2019).

A natureza coloidal das substâncias húmicas e sua capacidade de formar quelatos com íons favorecem a utilização de minerais, aumentando o teor de cinzas da tíbia e a retenção mineral (Marcinčák et al., 2023). Sua capacidade quelante funciona como “armadilha” de cálcio, reduzindo a formação de complexos minerais insolúveis, particularmente aqueles que envolvem cálcio e fósforo. Assim, em vez do cálcio se ligar ao PP, ele se liga parcialmente ao componente húmico do humofosfato de cálcio, reduzindo sua interferência na absorção de fósforo e na atividade da fitase, o que melhora a digestibilidade do fósforo vegetal.

Um estudo realizado em colaboração com a Universidade de Madrid apoia esse mecanismo de ação, mostrando maior digestibilidade do fósforo, matéria seca e matéria orgânica em dietas contendo HumIPHORA em comparação com aquelas com fosfato monocálcico (MCP). A digestibilidade da matéria orgânica, nesse contexto, reflete a melhor utilização de aminoácidos e proteínas (Figura 5).

Figura 5: Efeito da inclusão de HumIPHORA em dietas de frangos sobre a digestibilidade do fósforo, matéria orgânica e matéria seca.